Thursday, February 28, 2008
Ainda sobre a Sr. Morte.
A Morte Absoluta
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."
Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.
Manuel Bandeira.
Por que me falas nesse idioma?
Em qualquer língua se entende essa palavra.
Sem qualquer língua.
O sangue sabe-o.
Uma inteligência esparsa aprende
esse convite inadiável.
Búzios somos, moendo a vida
inteira essa música incessante.
Morte, morte.
Levamos toda a vida morrendo em surdina.
No trabalho, no amor, acordados, em sonho.
A vida é a vigilância da morte,
até que o seu fogo veemente nos consuma
sem a consumir.
Cecília Meireles
Friday, December 21, 2007
A morte do tempo
Atirou a primeira vez, pra testar a coragem. Arma em punho, suor entre os dedos, acertou o vaso. Tinha provado que conseguiria. Apesar de ter mirado o canto da janela, acertar o vaso já era algo. E desde que entrara no quarto, eram três as coisas que via: o relógio logo à entrada, o vaso do lado da cama e, na cama, um homem.
Da segunda vez, mais seguro e mais tenso, porque afinal já acertara uma vez, ajeitou o silenciador recém-comprado, tinha medo de que falhasse. Segurou mais firme e chegou-se perto, bem perto do homem que dormia, incapaz de acreditar que ele não tinha acordado com o barulho do vaso estilhaçando duas vezes, o tiro seguido do chão.
Estaria morto? Talvez estivesse, mas agora era tarde. Morto ou não morto: e se estivesse, morreria de novo. Trêmulo, entre vivo e indeciso, mas perfeitamente convencido de que tinha de sair dali tendo feito o serviço inteiro, disparou o segundo tiro.
No ombro direito. Calculara mal o peso da arma, a proximidade do homem, pensou que o coração estaria à esquerda. E a arma, que tinha ido quase bem no primeiro disparo, nesse parecia querer fazer piada. Não era hora de piada, e ele se conformou pensando que pelo menos atingira o alvo. Torto, mas o alvo.
Continuaria. Suando ainda, esperava a reação do corpo. Passara já de homem para corpo. Estaria morto? Bobagem. O sangue empapando os lençóis, o suor escorrendo vivo. Vida era algo que não enchia aquela casa, mas tinha mais o que fazer do que ficar divagando.
Porque estava mesmo indo devagar. Maldição, tinha hora. Compromissos. Pois continuasse. Tiro três, conforme o combinado, agora mirasse direito. Tinham-lhe dito: “mão esquerda, não esqueça” e ficou-lhe tão surreal a idéia de ir matar alguém e desferir um tiro na mão esquerda, que quase não percebeu ali a aliança suja. Crime de amor, tinha graça, ele ali metido numa trama de ciúmes. Mas também, que diferença. Mirou: mão esquerda.
Desviou alguns centímetros para o lado, já prevendo o erro havido nos outros tiros, e, disparo feito, finalmente acertara onde queria. A mão estilhaçada por cima do travesseiro, sangue em volta do medo. Pensara que melhoraria com o tempo, mas a ânsia de vomitar só crescia com os ponteiros daquele maldito relógio que só tiquetaqueava. Não ajuda, só marcava. Marcava, matava, diabo de pensamentos.
O anel permanecera intacto. Azar, faltava ainda dois tiros, o combinado eram cinco. E o que até então era dúvida, virou certeza: tinha vindo matar um homem morto. Teria morrido antes de ele chegar, coisa de pouco tempo? teria talvez sido morto por aquele que o contratara? Estava pensando demais, pensando demais.
De repente o medo, estivera com um morto aquele tempo todo. Um morto que preenchia o tempo mais que ele, queria ir embora. Lembrou-se da avó morta, da mãe morta, dos amigos mortos, todos tão mortos quanto ele temia estar, naquele mesmo momento. E se quem tivesse matado o homem estivesse ali ainda, esperando que ele saísse, pra continuar o joguinho, a grandiosa brincadeira? Suor, suor entre os dedos.
Suor a camisa, sangue os lençóis. Temeu por si mesmo, e o silêncio dos tiros recém-atirados fez com que nascesse certeza de que havia alguém vigiando. Das cinco balas que tinha, três tinham ido a um morto, que burrice. Não cumpriria o combinado, afinal o morto já não estava, desde o começo, morto mesmo? Três balas perdidas, e quem perdera era ele.
Agora sabia tudo: o homem que o contratara era um maluco perfeito, e com toda a certeza devia estar naquela sala. Ou na cozinha. Ou na varanda, meu Deus, que casa enorme. E o sorriso com o qual o encarara, quando apertaram as mãos, ele dizendo “confio, confio nos seus serviços. Esteja também confiante quanto aos seus pagamentos”, claríssimo que era armadilha. Sabia, no momento do acerto, que aquele homem tinha plena capacidade de matar quem quer que quisesse, esconder todas as provas, e no outro dia estar sorrindo com um bando de mulheres numa quadra de tênis. Era rico, bonito e particularmente forte, por que contratar um fraco como ele? Por medo de ser preso? Burrice, que burrice, meu Deus...
Pensava nas duas balas restantes. E o pensamento batia nas paredes da casa, correndo com medo imenso, como será que teria morrido o morto na sua frente, aquele que pensara ter matado e agora tinha a certeza de que tinha sido uma grande farsa. O homem devia ter morrido de veneno, ou de asfixia ou de...
As marcas. As marcas no pescoço, claro, tinha sido estrangulado, como não tinha visto isso antes? Não, não estava fantasiando, tudo muito claro, o pescoço marcado, a morte na sua frente e talvez esperando nos lados, nos cantos dos quartos, tinha que correr. Corria.
A penumbra da casa não ajudava a memória a lembrar dos passos há pouco feitos, do caminho inverso, e ele segurava com força a arma pensando que precisaria daquelas balas.
Em última instância, uma era pro louco, a outra seria pra si, se precisasse. Não seria morto, desde pequeno sabia: não seria morto. Matava-se, mas ninguém a tocar-lhe o corpo, ninguém a ver-lhe morrer. Talvez por isso a profissão que escolhera, muito embora devesse dizer que aquele estava sendo seu primeiro trabalho completo. Completo?
Correu com as duas balas na mão, dentro da arma, até alcançar a porta. E quando afinal a mão já ia abrindo o destino da rua, ouviu um barulho às costas. Raciocinou ainda uma vez, iludido com a talvez capacidade de pensar friamente – não pensava. Tendo ouvido o ruído, esteve certo de que ou era o morto que não morrera ou era o assassino. Tão confuso e perdido, que esquecia ser ele o assassino contratado. Mão na maçaneta, um segundo só. E decidido a ninguém tocar-lhe o corpo, deu-se as duas balas de presente, as duas mais ou menos no centro do peito: morrer dignamente. Morreu com o pensamento de ter-se defendido e, no fim, o relógio continuava a marcar os segundos. E continuaria, e ele jamais perceberia que se tinha matado pelo peso dos ponteiros do relógio, naquela hora em que marcavam hora exata.
texto de: marília passos
lido por: ela mesma
na roda de: 08/12/07 (na verdade uma reprise, mas a data da primeira leitura eu não recordo)
Miolos
texto de: guilherme linhares
lido por: ele mesmo
na roda de: 08/12/07
(RE) (DES) ENCONTROS
Fazia aquele périplo quase diariamente, de uma maneira estóica, numa busca incessante.
Aconteceu em uma dessas festas populares, em que os mais eruditos se misturam às massas numa mesma catarse. Os olhos perscrutavam o ambiente ao redor, buscando alguma singularidade, uma familiaridade entre aqueles rostos anônimos que estavam compartilhando aparentemente o mesmo estado de contentamento, mas condicionados a demandas talvez antagônicas.
Pôs os olhos nela e como se fosse uma espécie de curso natural da história da vida de ambos, aproximaram-se, sugaram calidamente a atmosfera interior de cada um e se deixaram levar sem muita resistência pela multidão, seguindo caminhos opostos, aceitando passivamente o distanciamento, pois qualquer tipo de verbalização iria estragar a poesia e o equilíbrio da cena, além do que, dava um contorno de incerteza ao vir-a-ser, que embelezava mais ainda o fato. Estavam agora fadados a reprisar aquele pequeno filme através de um outro choque que abstraísse a realidade em volta, e que não envolvesse nenhuma expressão vocal. E nada mais especial naquele encontro do que o silêncio compenetrado em meio à incontornável poluição sonora.
Aquela parte da urbe estava em constante transformação, misturando construções antigas e outras com arquitetura de última ponta, além da sua própria natureza social, fazendo conviver a fórceps com um certo ranço de rivalidade, abastados e excluídos. Esse caos sócio-estético lhe acarretava uma desrreferencialização contribuindo ainda mais pra loucura que era aquela busca. Não sabia nem se estava realmente atrás de alguém ou de reviver um baque emocional. A pluralidade de construções e de classes era mesmo uma espécie de metáfora do seu turbilhão psicológico, pois intermitentemente reavaliava suas relações humanas, amalgamando ressentimentos e a superação deles, além do próprio valor de cada parte constituinte daquele mosaico cada vez mais fragmentado. Seguia fluxos, ia na contramão de todos, esbarrava nas pessoas, esperava ouvir algo alentador, ou encontrar um ponto de destaque nos olhos de alguém, ou em algo material que emanasse uma fagulha de serenidade. Era sempre assim quando estava em qualquer meio social. Buscava obcecadamente atenuar sua misantropia, olhando detalhadamente o máximo que seu raio de ação ocular podia. Foi dessa forma que se deu o encontro.
Era interessante aquele sobrado, com a tinta desbotada e sempre ausente de pessoas. Parecia prestes ao desmoronamento. Talvez fosse o lugar da delimitação geográfica que ele havia feito, com o qual mais se identificava. Paradoxalmente no mesmo quarteirão, erguia-se um prédio com uma estrutura que exalava funcionalidade, modernidade, sempre lotado de gente. Trazia uma certa atração por aquele vai-e-vem, com a porta de entrada abrindo-se automaticamente quando alguém se aproximava. A tecnologia no final das contas dava um certo ar de realidade fantástica àquela elevação asséptica, árida e sólida. Ao contrário do sobrado estava envolta em uma aclimatação desumanizada, apesar das pessoas fazerem parte cotidianamente de sua paisagem. Talvez residisse aí a razão. Quando a calçada acabava, entrando a direita e subindo uma rampa quase na vertical, podia deparar-se com um campinho, sempre cheio de garotos jogando. Era incrível o aspecto simbólico de afetividade e vivacidade naquilo: lembrava-se da infância e das tardes mais felizes que já tivera correndo atrás de uma bola, além do que, os seres ali se interagiam, diferente da impessoalidade que marca boa parte das relações sociais urbanas, e isso tendo como palco um logradouro que está fadado ao desaparecimento devido à especulação imobiliária, dando ao campinho um aspecto de resistência à avidez comercializante do sistema. Em frente havia um boteco desses bem rústicos, cheio de velhos bebendo, ao entrar, travava-se contato com toda a memória afetiva do bairro, tendo a real dimensão do vilipendiamento dos laços comunitários. Resquícios dele poderiam ser observados nas cadeiras que aquelas donas-de-casa punham na calçada todo fim de tarde. Tudo é uma mistura de pureza nostálgica e contemporaneidade.
Inconscientemente havia passado três vezes naquela rua. Era como se de algum trecho dela fosse surgir uma revelação. E então depara-se com a garota, como se esta tivesse saído de uma meta-realidade. E ficaram sentados um em frente ao outro, sem desvio no olhar, e sem toques, reprisando o silêncio compenetrado e cúmplice, formando uma ilha que irradiava uma áurea intensa e iluminada no meio da vertiginosidade em volta.
texto de: guilherme linhares
lido por: ele mesmo
na roda de: ??? (o primeiro texto que ele leu nos encontros, se eu não me engano justamente no primeiro dia que ele foi lá, em março ou abril).
Tuesday, June 12, 2007
Uma lenda chamada Samantha
texto de: Guilherme Linhares
lido por: ele mesmo
na roda de: 09/06/07
Pulsões Literárias
texto de: Guilherme Linhares
lido por: ele mesmo
na roda de: 09/06/07
Saturday, June 09, 2007
Pecado
- Perdoe-me, Padre, pois eu pequei.
A voz baixa e suave entrava pelo confessionário como se a luz se responsabilizasse por sua entrada quente, morna e delicada.
- Pode falar, filha.
Começou a denunciar-se, os olhos estavam cobertos por óculos escuros. Se estavam cerrados ou arregalados não se sabia.
Cabelos louros, quase ouro, lábios grossos e vermelhos, pele lisa e branca. Pura como a sociedade lhe fizera.
Andava calmamente, não como sempre. Precisava apenas de uma tarde diferente, sem namorado, família, trabalho ou amigos. Voltava-se mais pra si, o tempo necessário para o ego.
Foi ao cinema. Não sabia a que filme assistir, mas foi. Comprou o ingresso. Seção das 15, mas eram 13 e trinta. Então decide percorrer pelo salão do museu e de seus pensamentos. Os quadros não lhe interessavam, estavam longe de seu entendimento ou de sua vontade de entender algo naquele momento. Brincou com seu crucifixo enquanto caminhava, acariciava cristo, isso a entretia.
Olhou para o lado, quando estava se distraindo em desperceber as obras plásticas do famoso artista do Irã.
Encontrou um gesto gentil, quase obrigatório de uma atendente.
Cabelo curto, vermelho, óculos pequenos para não esconder a beleza do rosto.
Deveria ser de prache.
Passou por ela com um andar que atrai desconsertos a olhos desacostumados com o lampejo da carne. Andava como quem pedia... E gravava-se na memória.
Continuou a andar.
Pensa em coincidências e destino, aquela fraqueza dos seres humanos ao tentar ratificar o tesão.
Agora estão a se vigiar.
Informações são dadas a qualquer visitante que se interesse em obtê-las
A conversa acontece.
Arte, filosofia, sorriso, cinema, gesto delicado no cabelo, sociedade, umedecimento de lábios, câmeras, mãos na nuca, discrição.
Quando não, já estavam a percorrer uma escada circular que as levasse para baixo. Sem câmeras (olhos mecânicos) nem indiscrição.
Cabelos soltos, bocas vorazes, mordidas de leve, respiração forte, blusas abertas, seios sensíveis, pele lisa, pêlos ralos, cheiro louco, língua voraz, salgado gostoso, mordidas safadas, mãos ágeis, sussurros roucos, dente, batom, espelho, contentamento.
Volta a encontrar a escada e percorre o caminho de volta, sozinha, apenas com um sorriso safado na boca.
Entra no cinema. Fica de frente à tela. Luzes alternam entre falas distantes.
Nada importa.
- Fui animal confesso e sei que isso não devia ter acontecido.
Correm lágrimas de seu olho e sua fala é fragmentada.
- Perdoe-me... Padre, pois eu pequei.
Após o relato o padre ficou ali, ereto. Os pensamentos voavam. O padre não estava mais lá, só restou o homem.texto de: Márcio Araújo
lido por: Márcio Araújo
na roda de: 09/06/07
Thursday, June 07, 2007
Tema do Mês : Sexo e literatura
http://pormaisleitura.blogspot.com/2007/06/para-alm-da-roda-sacanagem-rola-muito.html
O Professor Filósofo - Sade
De todas as ciências que se inculca na cabeça de uma criança quando se trabalha em sua educação, os mistérios do Cristianismo, ainda que uma das mais sublimes matérias dessa educação, sem dúvida não são, entretanto, aquelas que se introjetam com mais facilidade no seu jovem espírito.
Persuadir, por exemplo, um jovem de catorze ou quinze anos de que Deus pai e Deus filho são apenas um, de que o filho é consubstancial com respeito ao pai e que o pai o é com respeito ao filho, etc, tudo isso, por mais necessário à felicidade da vida, é, contudo, mais difícil de fazer entender do que a álgebra, e quando queremos obter êxito, somos obrigados a empregar certos procedimentos físicos, certas explicações concretas que, por mais que desproporcionais, facultam, todavia, a um jovem, compreensão do objeto misterioso.
Ninguém estava mais profundamente afeito a esse método do que o abade Du Parquet, preceptor do jovem conde de Nerceuil, de mais ou menos quinze anos e com o mais belo rosto que é possível ver. – Senhor abade, – dizia diariamente o pequeno conde a seu professor – na verdade, a consubstanciação é algo que está além das minhas forças; é-me absolutamente impossível compreender que duas pessoas possam formar uma só: explicai-me esse mistério, rogo-vos, ou pelo menos colocai-o a meu alcance.
O honesto abade, orgulhoso de obter êxito em sua educação, contente de poder proporcionar ao aluno tudo o que poderia fazer dele, um dia, uma pessoa de bem, imaginou um meio bastante agradável de dirimir as dificuldades que embaraçavam o conde, e esse meio, tomado à natureza, devia necessariamente surtir efeito. Mandou que buscassem em sua casa uma jovem de treze a catorze anos, e, tendo instruído bem a mimosa, fez com que se unisse a seu jovem aluno.
– Pois bem, – disse-lhe o abade – agora, meu amigo, concebas o mistério da consubstanciação: compreendes com menos dificuldade que é possível que duas pessoas constituam uma só?
– Oh! meu Deus, sim, senhor abade, – diz o encantador energúmeno – agora compreendo tudo com uma facilidade surpreendente; não me admira esse mistério constituir, segundo se diz, toda a alegria das pessoas celestiais, pois é bem agradável quando se é dois a divertir-se em fazer um só.
Dias depois, o pequeno conde pediu ao professor que lhe desse outra aula, porque, conforme afirmava, algo havia ainda “no mistério” que ele não compreendia muito bem, e que só poderia ser explicado celebrando-o uma vez mais, assim como já o fizera. O complacente abade, a quem tal cena diverte tanto quanto a seu aluno, manda trazer de volta a jovem, e a lição recomeça, mas desta vez, o abade particularmente emocionado com a deliciosa visão que lhe apresentava o belo pequeno de Nerceuil consubstanciando-se com sua companheira, não pôde evitar colocar-se como o terceiro na explicação da parábola evangélica, e as belezas por que suas mãos haviam de deslizar para tanto acabaram inflamando-o totalmente.
– Parece-me que vai demasiado rápido, – diz Du Parquet, agarrando os quadris do pequeno conde de muita elasticidade nos movimentos, de onde resulta que a conjunção, não sendo mais tão íntima, apresenta bem menos a imagem do mistério que se procura aqui demonstrar... Se fixássemos, sim... dessa maneira, diz o velhaco, devolvendo a seu aluno o que este empresta à jovem.
– Ah! Oh! meu Deus, o senhor me fez mal – diz o jovem – mas essa cerimônia parece-me inútil; o que ela me acrescenta com relação ao mistério?
– Por Deus! – diz o abade, balbuciando de prazer – não vês, caro amigo, que te ensino tudo ao mesmo tempo? É a trindade, meu filho... é a trindade que hoje te explico; mais cinco ou seis lições iguais a esta e serás doutor na Sorbonne.
Decameron - Giovanni Boccaccio
( Fragmento )
O monge viu uma jovem lindíssima, filha , talvez , de algum dos lavradores da região . A jovem estava apanhando algumas ervas nos campos . Assim que o monge a viu, sentiu-se acometido pelo interesse carnal . Por esta razão , acercou-se mais da jovem e travou conversa com ela . E tanto saltou de uma palavra a outra , que terminou por firmar um acordo com ela . Por esse acordo firmado, levou-a à sua cela , sem que ninguém o percebesse. Instigado por um desejo excessivo , brincou com ela , e de um modo menos cauteloso do que seria conveniente .
Sucedeu que o abade do mosteiro , deixando a sua cama , onde dormira, e passando, sem fazer ruído , em frente à sala do tal monge , escutou a barulheira que ele e a moça faziam. Para identificar mais precisamente as vozes o abade chegou bem próximo à porta da cela. Notou sem nenhuma dúvida , que havia uma mulher lá dentro. Sentiu-se tentado a ordenar que se abrisse a porta. Entretanto , pouco depois , julgou que seria mais conveniente agir de outro modo , em semelhante caso . Retornou ao seu quarto e aguardou que o monge deixasse a cela .
Apesar de ocupado com a jovem , e ainda que gozasse enorme prazer , o monge não deixou de desconfiar de algo ; a certa altura , tivera a impressão de ouvir um arrastar de pés , pela ala dos quartos de dormir. Por essa razão , olhou através de pequeno orifício e viu que o abade ali estava, escutando. Entendeu, perfeitamente , que o abade devia saber que a jovem estava em sua companhia . Reconhecendo que , por essa razão , seria punido com grave castigo , mostrou-se profundamente aborrecido . Contudo , sem deixar que a moça percebesse a sua contrariedade , buscou em sua mente algo que o auxiliasse a escapulir daquela enrascada . Finalmente , ocorreu-lhe uma artimanha, que calhava bem a esse fim. Daí, fingindo já ter ficado o suficiente em companhia da jovem , disse-lhe:
– Quero achar uma maneira de você sair daqui de dentro sem que a vejam; assim sendo, fique aqui mesmo , calmamente , até que eu regresse.
Deixou a cela e trancou a porta com a chave . Encaminhou-se diretamente para a cela do abade, dando-lhe a chave , conforme a tradição, quando se ausentava do mosteiro. Disse, então, com expressão tranqüila e amiga :
– Senhor abade , não pude, esta manhã , ordenar que trouxessem ao mosteiro toda a lenha que pude arranjar ; por esta razão , com sua permissão , desejo ir ao bosque , para mandar que a tragam.
O abade , desejando informar-se por completo com relação à falta praticada pelo monge , ficou satisfeito com o seu modo de agir . Recebeu a chave e deu ao monge permissão para ir ao bosque . Ficou convencido , como se percebe , de que o monge nada sabia do fato de ele , abade , ter ficado escutando à porta de sua própria cela .
Bastou o monge se retirar, o abade procurou resolver o que seria mais certo fazer , primeiramente : abrir-lhe a cela , na presença de todos os monges do mosteiro , para que ninguém pudesse apresentar razões de queixa contra ele, no momento em que pela sua autoridade abacial castigasse o monge pecador , ou escutar, primeiro , da jovem mesma , a sós , como se passara o caso . Cogitando, entretanto , que a jovem pudesse ser esposa ou filha de algum homem que ele não gostaria de fazer passar por essa vergonha , decidiu que o melhor seria tratar , primeiramente , de saber quem era aquela moça para depois resolver o que faria. Silenciosamente , dirigiu-se para a cela do monge ; abriu a porta ; entrou e fechou-a por dentro , naturalmente . Vendo entrar o abade , a moça ficou desconcertada . Cheia de vergonha e de medo , pôs-se a chorar . O senhor abade olhou-a por muito tempo ; vendo-a tão bela e sensual , sentiu inesperadamente , ainda que um tanto idoso , os apelos da carne . Eram apelos não menos ardentes do que aqueles que sentira o jovem monge . E a si mesmo começou a dizer :
– Enfim , que razão há para que eu deixe de desfrutar um prazer, quando posso desfrutá-lo, se, por outro lado , os aborrecimentos e os tédios estão sempre preparados para que eu os prove, queira ou não ? Aí está uma bela moça, sem que nenhuma pessoa , no mundo , saiba disso. Se posso fazer com que me proporcione os prazeres pelos quais anseio , não existe nenhuma razão para que eu não a induza Quem é que virá a saber disto? Ninguém nunca o saberá! Pecado oculto é pecado meio perdoado. Um acaso destes quiçá jamais venha a se verificar de novo . Julgo ser conduta acertada colher o bem que Deus Nosso Senhor nos envia.
Assim refletindo, e tendo modificado inteiramente o propósito pelo qual fora até ali , acercou-se mais da moça . Com voz melíflua , pôs-se a confortá-la e a pedir , com instância , que não chorasse. Palavra puxa palavra , até que ele chegou ao ponto de poder evidenciar à moça o seu desejo . A jovem , que não era construída de ferro nem de diamante , atendeu, muito cômoda e amavelmente aos prazeres do abade . O padre abraçou-a, beijou-a muitas vezes , seguidamente , atirou-se com ela na cama do monge . Seja por enorme consideração , ou ao venerável peso de sua própria dignidade , ou pela idade tenra da jovem – seja, então por recear causar-lhe mal , pelo seu excessivo peso –, o abade não se pôs sobre o peito da moça. Antes, colocou-a sobre o seu próprio peito. E, durante muito tempo , entreteve-se com ela .
O monge , que havia fingido ir ao bosque , mas que , na verdade , escondera-se na ala dos dormitórios , viu quando o abade entrou em sua cela . Assim , completamente tranqüilo , compreendeu que seu plano dera resultado , ao perceber que o abade trancara a porta por dentro. Deixando o seu esconderijo , silenciosamente foi até o orifício da fechadura, através do qual viu e ouviu o que o abade fez e disse.
Quando pareceu ao abade que já se demorara o bastante em companhia da jovem , deixou-a trancada na cela , e retornou ao seu quarto . Passado algum tempo , ouvindo que o monge chegava, e pensando que ele regressasse do bosque , decidiu censurá-lo e mandar que o prendessem no cárcere ; assim procedendo, pretendia ficar sozinho na posse da presa conquistada. Ordenou, portanto , que o monge viesse à sua presença. Com o rosto severo e com graves palavras , censurou-o, mandando que fosse conduzido ao cárcere . O monge , sem nenhuma hesitação , retrucou:
– Senhor abade , não estou, ainda , há tempo bastante na Ordem de São Bento para conhecer todas as singularidades de sua disciplina . O senhor não me mostrara ainda que os monges precisam fazer-se mortificar pelas mulheres , assim como devem fazê-lo com jejuns e vigílias ; agora , contudo , que o senhor acaba de mo demonstrar , prometo-lhe, se me conceder o perdão por esta vez , que nunca mais pecarei por esta forma ; ao contrário , procederei sempre como vi o senhor fazer .
O abade , como homem astuto que era , reconheceu logo que o monge não só conseguira saber a seu respeito muito além do que o suposto , mas ainda ver quanto ele fizera. Por esta razão , sentiu remorsos pela sua própria culpa ; e ficou vexado de aplicar ao monge o castigo que ele , tanto quanto o seu subordinado , merecera. Deu-lhe o perdão , mas impôs-lhe silêncio sobre quanto vira . Depois , levaram ambos a moça para fora do mosteiro ; e, mais tarde, como é fácil de se presumir , inúmeras vezes a fizeram retornar ali .
Cântico dos Cânticos de Salomão
Anseios de Amor
Ela
Sua boca me cubra de beijos !
São mais suaves que o vinho tuas carícias ,
e mais aromáticos que teus perfumes
é teu nome , mais que perfume derramado;
por isso as jovens de ti se enamoram.
Leva-me contigo ! Corramos!
O rei introduziu-me em seus aposentos .
Coro
Queremos contigo exultar de gozo e alegria ,
celebrando tuas carícias , superiores ao vinho .
Com razão as jovens de ti se enamoram.
Recanto de Amor
Ele
És um jardim fechado, minha irmã e minha noiva ,
uma nascente fechada, uma fonte selada.
Tuas plantas são um vergel de romãzeiras ,
vegetação toda selecionada :
umbelas de alfena e flores de nardo,
nardo e açafrão , canela e jasmim-azul,
toda espécie de árvores de incenso ,
mirra e aloés ,
os melhores bálsamos .
A fonte do jardim
é como um manancial de água corrente
que brota do Líbano.
Desperta, Aquilão !
E tu , Austro, vem soprar em meu jardim ,
para que se espalhem seus aromas !
Apelo da Amada
Ela
Que entre o meu amado em seu jardim
para comer dos frutos deliciosos !
E le
Já vou ao meu jardim , minha irmã
e minha noiva ,
colher mirra e bálsamo ,
estou comendo o meu favo de mel
e bebendo o meu vinho e o meu leite .
Coro
Amigos , comei!
bebei e embriagai-vos do amor !
A uma Mulher Amada - Safo
Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro !
Quem goza o prazer de te escutar ,
quem vê , às vezes , teu doce sorriso .
Nem os deuses felizes o podem igualar .
Sinto um fogo sutil correr de veia em veia
por minha carne , ó suave bem querida ,
e no transporte doce que a minha alma enleia
eu sinto asperamente a voz emudecida.
Não ouço mais . Eu caio num langor supremo ;
E pálida e perdida e febril e sem ar ,
um frêmito me abala ... eu quase morro ... eu tremo.
De Amaru – Poesia Clássica Hindu
(trecho)
1
– Aonde vais pela alta noite adentro?
– Encontrar-me com quem me é vida e morte.
– E não tens medo de sair tão só?
– Sozinha? Eu? Se vai comigo o amor!
*
2
Eu disse "Deixa-me em paz",
a atormentá-lo de amor.
Levantou-se o meu amado,
e foi-se embora enfadado.
Que jeito com os homens ter?
Tão duro, sem coração,
e eu ardo em baixos desejos
do falso ardor dos seus beijos.
Minha amiga, que fazer?
*
3
Ao ver sua boca ao pé da minha boca,
desviei o olhar. E as mãos pus nos ouvidos,
quando as palavras dele retiniam.
Também escondi com as mãos o suor de enleio
que a fronte me perlava. Tentei tudo.
Mas que fazer, quando senti que as vestes
por si caíam por meu corpo abaixo?
*
4
Esmagados no abraço os seios dela,
a pele tremia-lhe, e entre as suas ancas
do amor a seiva oleosa transbordou.
"Não, meu querido, outra vez... não... oh, deixa-me
descansar", pedia num suspiro.
E dorme? Ou morre? Ou se desvaneceu
dentro em meu peito? Ou não é mais que um sonho?
Fonte:
Poesia de 26 Séculos. Tradução de Jorge de Sena. Porto, Ed. Inova, 1971.
Tuesday, May 15, 2007
18º Encontro Literário Por MAIS Leitura
Antes, uma observação: passamos batido no 17º encontro? Não! Quem disse que temos que seguir a ordem cronológica? Na arte não há regras! Portanto, Em breve poderemos relatar e ler como foi a Roda de leitura em homenagem à nossa Fortaleza. Só não o faço porque infelizmente cheguei no finalzinho e não sei detalhes do que rolou antes de minha chegada... Quem esteve desde o começo ainda pode postar aqui, que tal?
Nossa roda gira, gira... O tema desse encontro foi a apresentação de textos autorais. Tivemos participantes novos e veteranos, assíduos e itinerantes... Alguns trouxeram seus textos para serem lidos, outros apenas vieram ver e ouvir. Por MAIS Leitura é isso: diversidade, liberdade, boas-vindas e braços abertos para todos os interessados!
Abaixo segue a seqüência dos textos que foram lidos. Alguns possuem links para quem quiser conferir o texto na íntegra. Fiquem à vontade!
1. Começamos com Lediana lendo 2 textos seus: Velha Novidade e Aceitar o tempo. Logo após o texto rodou foi novamente lido por Guilherme, Joana e Marília.
2. Guilherme leu os seus textos: Velocidade e Jogo Eletrônico
3. Para ilustrar uma idéia durante a discussão sobre o texto de Guilherme, Ary leu o texto Canção 9, presente no encarte do cd "Ode descontínua e remota para flauta e oboé - de Ariana para Dionísio", parceria de Zeca Baleiro (músicas) e Hilda Hist (letras).
4. Alan leu o texto Lacuna, de autoria de Ary.
5. Ítalo leu mais um texto de Ary: Arqueologia.
6. Joana trouxe um texto seu: Tarefa de casa, que foi lido por Ítalo.
7. Marília leu o conto Um jazz, de sua autoria.
8. Bruno leu o seu texto Não tem título, sobre um amor felino.
9. Finalizando a roda, Lara leu um texto seu, sem título, que falava sobre um momento, um caminhar, barulho folhas secas sendo pisadas e luz do sol...
JOGO ELETRÔNICO
texto de: Guilherme Linhares
lido por: ele mesmo
na roda de: 12/05/2007
VELOCIDADE
____________________Carros passam. __Ônibus chegam. __ Trens
rasgam. _ Transeuntes atravessam._ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _Pixelsconfiguram i m a g e n s serevezam.
____________Notícias são paisagens.
O meu olhar inerte contrasta com a mobilidade. _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
texto de: Guilherme Linhares
lido por: ele mesmo
na roda de:: 12/05/2007
Monday, May 14, 2007
Não tem título
um amor que não é fácil
e s'indolor
um amor não automático
um amor que indiferente
convivência sutilmente
todo o dia
e vela (`)a noite
meu deus como é bonito
que brilho é esse
de sol dentro da noite
quando tu me olha assim
tão penetrante indiferente
notar
depois de um dia inteiro
o gato
imóvel em cima da cama
ao lado do jarro das flores do armário
como pode amar assim um gato
texto de: Bruno Reis
lido por: ele mesmo
na roda de: 12/05/2007
Velha novidade
Assim, foi lhe escapando como água entre os dedos tudo o que até pouco tempo estava bem ao seu alcance. À medida em que percebeu esta subtração, um vazio foi se apoderando de si. O novos preenchimentos simplesmente desapareceram e ele não sabia explicar o que havia acontecido. Chegou a saborear o momento com euforia, acreditando ser mais uma nova emoção. E por um lado, até podia ser.
Mas o tempo foi passando cada vez mais depressa e ele se viu completamente só, perdido, longe de seus desejos. Exigia tudo de volta, como era antes. Não entendia como tudo mudara de repente. Queria mais uma chance para curar o arrependimento...
Era chegada a hora de assumir seus erros, seu desdém às tantas coisas que deixara inacabadas. Constatou que não haveria mais como se corrigir. Mas acertar agora e daqui em diante talvez o livrasse da culpa do passado incompleto. E finalmente entendeu: jamais o teria de volta.
Aceitou-se.
Aceitar o tempo
Perceber a chegada dos novos e bons momentos e vivê-los a seu tempo, dando-lhes o valor que merecem no mesmo instante em que são experimentados, com a lucidez de que o fim chegará. Compreender também a sua partida, e deixar a onda passar na forma tão natural como veio.
texto de: Lediana Aquino
lido por: Lediana, Guilherme, Joana e Marília
na roda de: 12/05/2007