Friday, December 21, 2007

(RE) (DES) ENCONTROS

Fazia aquele périplo quase diariamente, de uma maneira estóica, numa busca incessante.

Aconteceu em uma dessas festas populares, em que os mais eruditos se misturam às massas numa mesma catarse. Os olhos perscrutavam o ambiente ao redor, buscando alguma singularidade, uma familiaridade entre aqueles rostos anônimos que estavam compartilhando aparentemente o mesmo estado de contentamento, mas condicionados a demandas talvez antagônicas.

Pôs os olhos nela e como se fosse uma espécie de curso natural da história da vida de ambos, aproximaram-se, sugaram calidamente a atmosfera interior de cada um e se deixaram levar sem muita resistência pela multidão, seguindo caminhos opostos, aceitando passivamente o distanciamento, pois qualquer tipo de verbalização iria estragar a poesia e o equilíbrio da cena, além do que, dava um contorno de incerteza ao vir-a-ser, que embelezava mais ainda o fato. Estavam agora fadados a reprisar aquele pequeno filme através de um outro choque que abstraísse a realidade em volta, e que não envolvesse nenhuma expressão vocal. E nada mais especial naquele encontro do que o silêncio compenetrado em meio à incontornável poluição sonora.

Aquela parte da urbe estava em constante transformação, misturando construções antigas e outras com arquitetura de última ponta, além da sua própria natureza social, fazendo conviver a fórceps com um certo ranço de rivalidade, abastados e excluídos. Esse caos sócio-estético lhe acarretava uma desrreferencialização contribuindo ainda mais pra loucura que era aquela busca. Não sabia nem se estava realmente atrás de alguém ou de reviver um baque emocional. A pluralidade de construções e de classes era mesmo uma espécie de metáfora do seu turbilhão psicológico, pois intermitentemente reavaliava suas relações humanas, amalgamando ressentimentos e a superação deles, além do próprio valor de cada parte constituinte daquele mosaico cada vez mais fragmentado. Seguia fluxos, ia na contramão de todos, esbarrava nas pessoas, esperava ouvir algo alentador, ou encontrar um ponto de destaque nos olhos de alguém, ou em algo material que emanasse uma fagulha de serenidade. Era sempre assim quando estava em qualquer meio social. Buscava obcecadamente atenuar sua misantropia, olhando detalhadamente o máximo que seu raio de ação ocular podia. Foi dessa forma que se deu o encontro.

Era interessante aquele sobrado, com a tinta desbotada e sempre ausente de pessoas. Parecia prestes ao desmoronamento. Talvez fosse o lugar da delimitação geográfica que ele havia feito, com o qual mais se identificava. Paradoxalmente no mesmo quarteirão, erguia-se um prédio com uma estrutura que exalava funcionalidade, modernidade, sempre lotado de gente. Trazia uma certa atração por aquele vai-e-vem, com a porta de entrada abrindo-se automaticamente quando alguém se aproximava. A tecnologia no final das contas dava um certo ar de realidade fantástica àquela elevação asséptica, árida e sólida. Ao contrário do sobrado estava envolta em uma aclimatação desumanizada, apesar das pessoas fazerem parte cotidianamente de sua paisagem. Talvez residisse aí a razão. Quando a calçada acabava, entrando a direita e subindo uma rampa quase na vertical, podia deparar-se com um campinho, sempre cheio de garotos jogando. Era incrível o aspecto simbólico de afetividade e vivacidade naquilo: lembrava-se da infância e das tardes mais felizes que já tivera correndo atrás de uma bola, além do que, os seres ali se interagiam, diferente da impessoalidade que marca boa parte das relações sociais urbanas, e isso tendo como palco um logradouro que está fadado ao desaparecimento devido à especulação imobiliária, dando ao campinho um aspecto de resistência à avidez comercializante do sistema. Em frente havia um boteco desses bem rústicos, cheio de velhos bebendo, ao entrar, travava-se contato com toda a memória afetiva do bairro, tendo a real dimensão do vilipendiamento dos laços comunitários. Resquícios dele poderiam ser observados nas cadeiras que aquelas donas-de-casa punham na calçada todo fim de tarde. Tudo é uma mistura de pureza nostálgica e contemporaneidade.

Inconscientemente havia passado três vezes naquela rua. Era como se de algum trecho dela fosse surgir uma revelação. E então depara-se com a garota, como se esta tivesse saído de uma meta-realidade. E ficaram sentados um em frente ao outro, sem desvio no olhar, e sem toques, reprisando o silêncio compenetrado e cúmplice, formando uma ilha que irradiava uma áurea intensa e iluminada no meio da vertiginosidade em volta.


texto de: guilherme linhares
lido por: ele mesmo
na roda de: ??? (o primeiro texto que ele leu nos encontros, se eu não me engano justamente no primeiro dia que ele foi lá, em março ou abril).

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