Saturday, March 10, 2007

Ele não sabe tomar sorvete

De: Bruno Reis
Quem leu: o próprio

Epílogo:

Ele não sabia tomar sorvete
Ele não chupa a bala que vende
Ele não sabe quanto é
Ele não sabe quanto

Tinha receio, sem precaução,
Ele não podia ter!
Cedia ao desejo, de olho aberto
Não se priva, mas se sacia com parcimônia*

*Ele não sabe o que é parcimônia
Ele não deve saber! Ele não pode!

Ele não devia estar tão exposto
Sozinho no banco
Com as pernas balançando
Enquanto não sabe tomar sorvete

*Ele não sabe se desconcertar
E isso é de desmontar qualquer um...

Porém, ninguém se desmontou


Prólogo:


‘’Me deixa, me deixa ver se eu caibo no teu desconforto...’’


Enfim:

Escrevi há pouco tempo esse verso, tentativa de captura lírica de um incomodo qualquer: a identificação morna que senti ao presenciar cena de embaraço, instante fugidio de um qualquer alguém. Instante fugidio e banal, e digo banal de ‘’banalidade’’ mesmo, não por banalização. Um engancho na palavra que não desce à boca, um segundo de hesitação que cala a segurança, e o corpo todo se desencontra. E o incômodo a que me refiro não foi o dela, foi o meu, maior ainda, ao lembrar que normalmente me sentiria sensibilizado, mas ao contrário, havia em mim apenas uma indiferença obscena e indecorosa. Tentei sublimar isso escrevendo um apelo a mim para que tentasse sentir o peso de ser o outro. Lirismo cínico esse o meu.

Pois bem, voltando ao começo, e usando o verso solto de gancho pro meio: hoje eu coube. Em outrem, e mais do que eu imaginava. Esperava que o desconforto alheio fosse menor que o meu, que eu ficasse ridículo feito um adulto com roupa que encolheu, a calça virando bermuda, enfiada no meio das pernas. Ou que a vestisse feito uma caixinha de pano e papel, deixando meus braços de fora. Mas não. Ele me coube inteiro. Inteiro e com vazios, como todo desconforto deve ser. Estava ali, dentro de uma caixa sem gravidade sendo chutada em uma partida de futebol em câmera lenta.

O cinismo desprevenido que joguei sobre os outros cai agora sobre mim com peso o opaco do sarcasmo. Sarcasmo da vida. A consciência da repetição não diminuiu o estranhamento vazio em nada. Não me coube indignação, revolta, tristeza. Apenas o sentimento de esquisitice extrapolando, me negando a encarar a normalidade quase boa de tudo. Nesse momento, o desconforto me comporta todo. Sou eu sentado como criança num banco alto, balançando as pernas no ar que mal se move, comendo um sorvete sem saber como. Sou eu me apropriando das cenas que vejo, repetindo meu exercício narcisista de inventar tristeza alheia para dar vazão àquelas que eu não me lembro. Não quero achar explicação. Não quero que o leitor me dê nenhuma. Um desconforto é só isso, um encerramento claustrofóbico. De que, em que? Não sei. Não é retiro espiritual, é retirada do espírito, confiscado. Por que? Por quem?

Não posso fazer o sacrilégio de dizer alguma coisa.

No comments: