Friday, December 21, 2007

A morte do tempo


Atirou a primeira vez, pra testar a coragem. Arma em punho, suor entre os dedos, acertou o vaso. Tinha provado que conseguiria. Apesar de ter mirado o canto da janela, acertar o vaso já era algo. E desde que entrara no quarto, eram três as coisas que via: o relógio logo à entrada, o vaso do lado da cama e, na cama, um homem.

Da segunda vez, mais seguro e mais tenso, porque afinal já acertara uma vez, ajeitou o silenciador recém-comprado, tinha medo de que falhasse. Segurou mais firme e chegou-se perto, bem perto do homem que dormia, incapaz de acreditar que ele não tinha acordado com o barulho do vaso estilhaçando duas vezes, o tiro seguido do chão.

Estaria morto? Talvez estivesse, mas agora era tarde. Morto ou não morto: e se estivesse, morreria de novo. Trêmulo, entre vivo e indeciso, mas perfeitamente convencido de que tinha de sair dali tendo feito o serviço inteiro, disparou o segundo tiro.

No ombro direito. Calculara mal o peso da arma, a proximidade do homem, pensou que o coração estaria à esquerda. E a arma, que tinha ido quase bem no primeiro disparo, nesse parecia querer fazer piada. Não era hora de piada, e ele se conformou pensando que pelo menos atingira o alvo. Torto, mas o alvo.

Continuaria. Suando ainda, esperava a reação do corpo. Passara já de homem para corpo. Estaria morto? Bobagem. O sangue empapando os lençóis, o suor escorrendo vivo. Vida era algo que não enchia aquela casa, mas tinha mais o que fazer do que ficar divagando.

Porque estava mesmo indo devagar. Maldição, tinha hora. Compromissos. Pois continuasse. Tiro três, conforme o combinado, agora mirasse direito. Tinham-lhe dito: “mão esquerda, não esqueça” e ficou-lhe tão surreal a idéia de ir matar alguém e desferir um tiro na mão esquerda, que quase não percebeu ali a aliança suja. Crime de amor, tinha graça, ele ali metido numa trama de ciúmes. Mas também, que diferença. Mirou: mão esquerda.

Desviou alguns centímetros para o lado, já prevendo o erro havido nos outros tiros, e, disparo feito, finalmente acertara onde queria. A mão estilhaçada por cima do travesseiro, sangue em volta do medo. Pensara que melhoraria com o tempo, mas a ânsia de vomitar só crescia com os ponteiros daquele maldito relógio que só tiquetaqueava. Não ajuda, só marcava. Marcava, matava, diabo de pensamentos.

O anel permanecera intacto. Azar, faltava ainda dois tiros, o combinado eram cinco. E o que até então era dúvida, virou certeza: tinha vindo matar um homem morto. Teria morrido antes de ele chegar, coisa de pouco tempo? teria talvez sido morto por aquele que o contratara? Estava pensando demais, pensando demais.

De repente o medo, estivera com um morto aquele tempo todo. Um morto que preenchia o tempo mais que ele, queria ir embora. Lembrou-se da avó morta, da mãe morta, dos amigos mortos, todos tão mortos quanto ele temia estar, naquele mesmo momento. E se quem tivesse matado o homem estivesse ali ainda, esperando que ele saísse, pra continuar o joguinho, a grandiosa brincadeira? Suor, suor entre os dedos.

Suor a camisa, sangue os lençóis. Temeu por si mesmo, e o silêncio dos tiros recém-atirados fez com que nascesse certeza de que havia alguém vigiando. Das cinco balas que tinha, três tinham ido a um morto, que burrice. Não cumpriria o combinado, afinal o morto já não estava, desde o começo, morto mesmo? Três balas perdidas, e quem perdera era ele.

Agora sabia tudo: o homem que o contratara era um maluco perfeito, e com toda a certeza devia estar naquela sala. Ou na cozinha. Ou na varanda, meu Deus, que casa enorme. E o sorriso com o qual o encarara, quando apertaram as mãos, ele dizendo “confio, confio nos seus serviços. Esteja também confiante quanto aos seus pagamentos”, claríssimo que era armadilha. Sabia, no momento do acerto, que aquele homem tinha plena capacidade de matar quem quer que quisesse, esconder todas as provas, e no outro dia estar sorrindo com um bando de mulheres numa quadra de tênis. Era rico, bonito e particularmente forte, por que contratar um fraco como ele? Por medo de ser preso? Burrice, que burrice, meu Deus...

Pensava nas duas balas restantes. E o pensamento batia nas paredes da casa, correndo com medo imenso, como será que teria morrido o morto na sua frente, aquele que pensara ter matado e agora tinha a certeza de que tinha sido uma grande farsa. O homem devia ter morrido de veneno, ou de asfixia ou de...

As marcas. As marcas no pescoço, claro, tinha sido estrangulado, como não tinha visto isso antes? Não, não estava fantasiando, tudo muito claro, o pescoço marcado, a morte na sua frente e talvez esperando nos lados, nos cantos dos quartos, tinha que correr. Corria.

A penumbra da casa não ajudava a memória a lembrar dos passos há pouco feitos, do caminho inverso, e ele segurava com força a arma pensando que precisaria daquelas balas.

Em última instância, uma era pro louco, a outra seria pra si, se precisasse. Não seria morto, desde pequeno sabia: não seria morto. Matava-se, mas ninguém a tocar-lhe o corpo, ninguém a ver-lhe morrer. Talvez por isso a profissão que escolhera, muito embora devesse dizer que aquele estava sendo seu primeiro trabalho completo. Completo?

Correu com as duas balas na mão, dentro da arma, até alcançar a porta. E quando afinal a mão já ia abrindo o destino da rua, ouviu um barulho às costas. Raciocinou ainda uma vez, iludido com a talvez capacidade de pensar friamente – não pensava. Tendo ouvido o ruído, esteve certo de que ou era o morto que não morrera ou era o assassino. Tão confuso e perdido, que esquecia ser ele o assassino contratado. Mão na maçaneta, um segundo só. E decidido a ninguém tocar-lhe o corpo, deu-se as duas balas de presente, as duas mais ou menos no centro do peito: morrer dignamente. Morreu com o pensamento de ter-se defendido e, no fim, o relógio continuava a marcar os segundos. E continuaria, e ele jamais perceberia que se tinha matado pelo peso dos ponteiros do relógio, naquela hora em que marcavam hora exata.

texto de: marília passos
lido por: ela mesma
na roda de: 08/12/07 (na verdade uma reprise, mas a data da primeira leitura eu não recordo)

Miolos

Seus pais viviam dizendo que ele só tinha merda na cabeça. Curioso e dado à atitudes extremas como era, deu de encontro com o crânio repetidas vezes no sólido. Cheirava mal. Mas passou o dedo na gosma pregada na parede. O gosto não era tão ruim.

texto de: guilherme linhares
lido por: ele mesmo
na roda de: 08/12/07

(RE) (DES) ENCONTROS

Fazia aquele périplo quase diariamente, de uma maneira estóica, numa busca incessante.

Aconteceu em uma dessas festas populares, em que os mais eruditos se misturam às massas numa mesma catarse. Os olhos perscrutavam o ambiente ao redor, buscando alguma singularidade, uma familiaridade entre aqueles rostos anônimos que estavam compartilhando aparentemente o mesmo estado de contentamento, mas condicionados a demandas talvez antagônicas.

Pôs os olhos nela e como se fosse uma espécie de curso natural da história da vida de ambos, aproximaram-se, sugaram calidamente a atmosfera interior de cada um e se deixaram levar sem muita resistência pela multidão, seguindo caminhos opostos, aceitando passivamente o distanciamento, pois qualquer tipo de verbalização iria estragar a poesia e o equilíbrio da cena, além do que, dava um contorno de incerteza ao vir-a-ser, que embelezava mais ainda o fato. Estavam agora fadados a reprisar aquele pequeno filme através de um outro choque que abstraísse a realidade em volta, e que não envolvesse nenhuma expressão vocal. E nada mais especial naquele encontro do que o silêncio compenetrado em meio à incontornável poluição sonora.

Aquela parte da urbe estava em constante transformação, misturando construções antigas e outras com arquitetura de última ponta, além da sua própria natureza social, fazendo conviver a fórceps com um certo ranço de rivalidade, abastados e excluídos. Esse caos sócio-estético lhe acarretava uma desrreferencialização contribuindo ainda mais pra loucura que era aquela busca. Não sabia nem se estava realmente atrás de alguém ou de reviver um baque emocional. A pluralidade de construções e de classes era mesmo uma espécie de metáfora do seu turbilhão psicológico, pois intermitentemente reavaliava suas relações humanas, amalgamando ressentimentos e a superação deles, além do próprio valor de cada parte constituinte daquele mosaico cada vez mais fragmentado. Seguia fluxos, ia na contramão de todos, esbarrava nas pessoas, esperava ouvir algo alentador, ou encontrar um ponto de destaque nos olhos de alguém, ou em algo material que emanasse uma fagulha de serenidade. Era sempre assim quando estava em qualquer meio social. Buscava obcecadamente atenuar sua misantropia, olhando detalhadamente o máximo que seu raio de ação ocular podia. Foi dessa forma que se deu o encontro.

Era interessante aquele sobrado, com a tinta desbotada e sempre ausente de pessoas. Parecia prestes ao desmoronamento. Talvez fosse o lugar da delimitação geográfica que ele havia feito, com o qual mais se identificava. Paradoxalmente no mesmo quarteirão, erguia-se um prédio com uma estrutura que exalava funcionalidade, modernidade, sempre lotado de gente. Trazia uma certa atração por aquele vai-e-vem, com a porta de entrada abrindo-se automaticamente quando alguém se aproximava. A tecnologia no final das contas dava um certo ar de realidade fantástica àquela elevação asséptica, árida e sólida. Ao contrário do sobrado estava envolta em uma aclimatação desumanizada, apesar das pessoas fazerem parte cotidianamente de sua paisagem. Talvez residisse aí a razão. Quando a calçada acabava, entrando a direita e subindo uma rampa quase na vertical, podia deparar-se com um campinho, sempre cheio de garotos jogando. Era incrível o aspecto simbólico de afetividade e vivacidade naquilo: lembrava-se da infância e das tardes mais felizes que já tivera correndo atrás de uma bola, além do que, os seres ali se interagiam, diferente da impessoalidade que marca boa parte das relações sociais urbanas, e isso tendo como palco um logradouro que está fadado ao desaparecimento devido à especulação imobiliária, dando ao campinho um aspecto de resistência à avidez comercializante do sistema. Em frente havia um boteco desses bem rústicos, cheio de velhos bebendo, ao entrar, travava-se contato com toda a memória afetiva do bairro, tendo a real dimensão do vilipendiamento dos laços comunitários. Resquícios dele poderiam ser observados nas cadeiras que aquelas donas-de-casa punham na calçada todo fim de tarde. Tudo é uma mistura de pureza nostálgica e contemporaneidade.

Inconscientemente havia passado três vezes naquela rua. Era como se de algum trecho dela fosse surgir uma revelação. E então depara-se com a garota, como se esta tivesse saído de uma meta-realidade. E ficaram sentados um em frente ao outro, sem desvio no olhar, e sem toques, reprisando o silêncio compenetrado e cúmplice, formando uma ilha que irradiava uma áurea intensa e iluminada no meio da vertiginosidade em volta.


texto de: guilherme linhares
lido por: ele mesmo
na roda de: ??? (o primeiro texto que ele leu nos encontros, se eu não me engano justamente no primeiro dia que ele foi lá, em março ou abril).